sexta-feira, abril 6

Então, a escrita: Relato da 2ª apresentação de Retratos: escolha de uma memória de infância


Vou escrever sempre. A cada vez que apresentar, durante os processos de criação, enfim, sempre. Tenho notado como escrever é uma extensão do criar e do vivenciar. É quando eu consigo mastigar e absorver tudo o que aconteceu, o que foi produzido e, ao mesmo tempo, ter novos insigts e direcionamentos.

Muitas ideias tem estado na minha cabeça durante o processo de re-criação para esta apresentação. Digo, recriação porque "Retratos" já havia sido criada uma vez e apresentada ano passado. Mas, agora, houve uma série de mudanças de idéias e objetivos e, com isso, um novo processo de criação. Ele durou de fevereiro ao fim de março. Apesar de eu ter sido contemplada com o Cena Aberta em setembro, por um motivo ou outro, adiei essa retomada.



Galeras esperando
E, como eu venho falando pra todo mundo que me dá trela, 2012 é um ano novo, no qual eu estou abandonando a ansiedade pouco a pouco e na medida em que consigo fazê-lo. Então, a criação veio quando foi possível que ela viesse. Claro, com o compromisso de apresentar na data X em mente.

Vou me ater um pouco neste texto a como foi performar no dia 25 de março, na Casa da Ribeira e, mais tarde, em outras postagens, desenvolver com palavras os conceitos, os insigts, tudo isso. E fazer também uma comparação entre as duas apresentações de Retratos, a primeira em 2011, no Circuito Bode Arte e junto a outras performances, que se incluiam no projeto "O que está aqui está em todo lugar, o que não está aqui está em lugar nenhum" e a segunda na Casa da Ribeira, em um palco italiano. Nessa última, o público ficou disposto em cima do palco, com as cortinas fechadas.

Lááá em cima da escada
A performance passou de três a quatro quadros na segunda apresentação. Chamo de quadros as ações que considero diferentes umas das outras com uma "quebra" entre elas. Da primeira apresentação, só mantive o primeiro, no qual recebo uma pessoa do público por vez, cada um portando uma foto minha de infância recebida na entrada. Quando apresentei ano passado, no Bode Arte, foi o momento que mais gostei. Era um encontro meio emocionado, com todo mundo realmente muito próximo de mim. O próprio ambiente era diferente. Se quando performei em 2011, o encontro se dava num cubículo coberto com pano branco e decorado com meus brinquedos, desta vez, ele aconteceu na escada do palco da Casa da Ribeira, atrás da rotunda. A pessoa subia até lá para me ver. A própria atitude de esperar, junto com a instalação das TVs já tornou a relação diferente. E ainda o ato de ir para um local escondido gerava uma curiosidade que não tinha sido criada na primeira apresentação. Teve gente que achou essa esperada demorada demais... Esse é um problema a solucionar para as próximas apresentações.

O clima desta vez foi outro. O público era formado mais por pessoas desconhecidas e, ao mesmo tempo, a cada vez que eu refazia as perguntas "Ainda é a mesma criança?", "Ainda é a mesma menina?" a partir das fotos que eles traziam, ia percebendo o quão essa questão não tem resposta. Juntar uns pedaços, comparar meu corpo ao corpo da foto, tudo isso faz sentido, mas a minha história é impossível de reconstruir. Eu procuro voltar ao mesmo olhar, à mesma posição das mãos. Existe um delicadeza que eu percebo e não sei por onde se perdeu. É como se eu tivesse vivido aquilo e não sabia.

Comecinho da ação...
Digamos que eu tinha uma memória específica da minha infância e no processo para construção da performance, pude perceber que haviam outras coisas, outras memórias, ou algo que eu inventei, o que eu acho que foi. Uma história que se desdobra da própria história. Uma memória que é e não é real. E coisas que eu juntei pra formar o que penso e sinto hoje sobre o meu passado. Creio que esse caminho tenha sido mesmo de recolher sentimentos que eu não sei decodificar ainda. É algo entre se reconstruir e se (re)conhecer. Há tantos caminhos em mim mesma que eu não sei e meu trabalho tem estado em olhar melhor pra tudo isso. A ausência ou a baixa consciência de si continua me chamando atenção, nas crianças, nos animais...

O segundo quadro foi o do toque, ao som do Hallelujah na voz do Jeff Buckley. Vou confessar que a escolha dessa música não tem exatamente a ver com a ação ou com a performance. Eu queria uma música/som junto à movimentação e essa, especificamente, me emociona muito. Nesse quadro, eu vou passando a mão em mim mesma, me tocando. É como um segundo momento de reconhecimento. Eu acho bonito pra caramba e a música realmente dá o embalo que eu preciso pra fazer a ação. Foi o momento que mais rendeu imagens bonitas.
Fim da ação
Mas, o que aconteceu na apresentação foi que, no hora de começar, nada deu certo. Música não saiu, som não funcionou e eu lá parada, com o público olhando, esperando as coisas acontecerem. Comecei a ação sem música e quando ela finalmente começou a tocar, acho que eu desabei. Foi fazendo, me tocando e chorando. Uma mistura de tensão com o próprio ato. Yuri disse que esse foi meu batismo na performance, porque as coisas deram errado e, por isso, deram mais certo ainda. Eu apresentei muito pouco e acho que por isso continuo me surpreendendo com esses momentos. Fico pensando que eu tenho tão poucas chances (quase nenhuma) de ser tão sincera com o que eu estou sentido e menos ainda de mostrar isso para outras pessoas que é quase como se estivesse me dando um presente. É um ato de confissão, ainda acho. E é incrível como tudo isso elimina a vergonha...

Lendo e chorando
O terceiro quadro foi o de ler as confissões, que estavam espalhadas no chão em envelopes. Como eu sempre tenho dúvidas antes de apresentar, tinha a impressão que era tudo muito pueril. Mas, na hora foi difícil dizer. Foi a hora de ganhar intimidade com as pessoas. A cada envolope que eu abria e lia, perguntava para as pessoas "Alguém tem algo a dizer". E eles disseram. Eu continuo com as minhas infindáveis dúvidas disso ou daquilo e olho pra essa ação achando ela meio boba. Mas, eu sei que eu é que estou sendo besta. As pessoas ali me contaram coisas, elas compartilharam algo. É um encontro e era isso que eu queria. Até agora, tem estado na minha cabeça uma das respostas que recebi: "É muito difícil me livrar do estigma de louca"... Todo mundo tem histórias, todas as pessoas têm um mundo próprio e tudo isso é, sim, muito interessante.

Por último, teve "a dança". Esse quadro faz parte da minha tentativa de encontrar algo que esteja entre a dança e o que o meu corpo goste de movimentar. Explicando melhor, estou procurando uma movimentação própria e etc. Tem muita teoria sobre isso por aí, eu é que não as conheço. O que fiz foi dançar as confissões, como se fosse uma outra coisa a contar. Montar essa "coreografia" passou pela escrita do que eu li para o público e também pelo mapeamento das ações/movimentações/trejeitos que me causavam alguma sensação, além daquelas que foram mais recorrentes no processo criativo. Então, é como se o meu corpo, por si só, corpo físico/biológico, tivesse um história que não me é consciente agora e que eu tento conhecer. Da mesma forma que eu, como um todo, tenho uma história esquecida por mim mesma.

La danse
Resumindo, posso dizer que os eixos deste trabalho estão no auto-(re)conhecimento e memória, na tentativa de conhecimento/encontro com o outro, na confissão e na descoberta da história do corpo (eu gosto de dizer que danço, mas acho que tem gente que me mataria por isso). Já é o começo de alguma coisa. Sinto que "Retratos: escolha de uma memória de infância" já está madura (sic) o suficiente para mudar de foco e de nome. O que me chama atenção não é mais exatamente a infância em geral nem a minha infância específica, mas a própria visão que nós temos da nossa história, como redescobrí-la e o que eu posso "revelar" para o outro.

*Entrevistas sobre o trabalho aqui e aqui.
*Programa da performance
*Trechos do diário do processo

Clique na foto para mais fotos!

Um comentário:

Jorge/cia.ltda. disse...

é uma das mais antigas imagens que eu tenho de mim mesmo: morávamos no interior de São Paulo e minha mãe estava grávida do meu irmão mais jovem. Na época eu nem sabia o que aconteceria mas os irmãos da minha mãe foram convocados começou uma correria na vizinhança e nós, os filhos, éramos afastados de toda a cena principal. o que aguçava nossa curiosidade. incrementada pelos gritos que já se ouvia. Meu pai trabalhava como caminhoneiro e neste dia não estava em casa. A IMAGEM que ficou foi todos os três irmãos sendo tirados de casa pelo ainda jovem Tio CARLOS, carregados todos numa bicicleta de aro circular, eu como o mais novo até então, seguia apoiado no guidon, de onde eu tinha uma imagem privilegiada da cena, já que viajava de costas para a direção para onde seguíamos e podia ver o rosto lindo e preocupado do tio Carlos, e ainda os rostos confusos de meus irmãos mais velhos, um no aro da bicicleta, entre eu e o Tio, e o mais velho no banco do carona. Ele era muito amoroso e cuidadoso e ainda preocupado e esforçado na sua função. É o expressão masculina mais poderosa ainda na minha memória.Dias depois eu soube que a cegonha tinha me trazido o meu novo irmão.